CRÔNICAS

Michel Kairalla expressou sua compreensão de vida no exercício do magistério, em que foi reconhecido e valorizado por seus alunos e colegas. Sua vocação de transmitir valores também ficou registrada nos artigos e crônicas que escreveu para o Jornal de Andirá, sob os pseudônimos “Mister Chips” e ”Che KAI”.
Alguns de seus escritos são transcritos abaixo:

1. Carta aberta ao meu filho
2. Tropeços
3. Paredón
4. Medo
5. Felicidade
6. Dia da Bandeira
7. Gratidão

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Carta aberta ao meu filho

Nasceste, meu filho, para orgulho de teus pais, nesta terra generosa e boa que Deus em Sua Exuberância, resolveu chamar Brasil. Quando ainda em teu bercinho, embevecido com aquele amor que somente os pais as bem, começava para mim uma nova luta, alentada, porém pela tua presença que era o que me animava a começar.

Queria que fosses um menino educado, amigo de teus colegas, admirado de teus mestres, esses abnegados que iriam ensinar-te as primeiras letras e contas.

Mas, já na própria escola irias encontrar os primeiros tropeços, pois entre teus colegas haverias de encontrar os que como tu, foram educados nesse altaneiro ideal.

Mas, infelizmente, serias parte de uma minoria e irias logo aprender que nesta vastidão, onde o Cruzei­ro de madeiro, simbolizando a cruz,  não haveria lugar para ti e nem para os que pensassem como tu.

Mas, quiçá, em tua juventude, encontraríamos o am­biente que eu sonhora noutras escolas, caríssimas, onde o vil metal talvez viesse a fizer a seleção que eu desejava, ainda que isso es­tivesse acima de minhas parcas posses. Se decepções houveram nos primórdios educacionais de tua existên­cia, agora apareceriam em maior número.

Começastes a conhecer os vícios e a saboreá-los. Voltavas para casa com as vestes rasgadas, o rosto machucado, porque não sa­bias te defender, inferiorizado em virtude da formação humane e cristã que eu er­radamente quis imprimir.

Mas, apesar dos pesares ias crescendo, já eras um homenzinho. Mas ainda não conhecias a vida…

No meu afã da luta pelo pão nosso de cada dia, não foi preciso ensina-la.

A vida se revelou para ti em várias formas… Arrasamento de Hiroshima e Nagasaki, pela bomba atômica, onde as vidas de mulheres, crianças e velhos foram ceifadas na hecatombe…

Mussolini, grande vulto, de agitador a “duce”, cuspido numa sarjeta, depois de morto pela população e traído pelos seus… Hitler, esse fanático, cujo fanatismo levou sua pátria aos pilares da glória e ao abismo da derrota… E eu, a te ensinar a amar teus semelhantes, a respeitar e venerar o próximo e embora tarde, hoje no ocaso de minha vida improfícua, eu reconheço que não errei ao pensar em que fazendo o que almejava estarias devolvendo com sobra o afeto que eu lhe dediquei. Se eu o tivesse ensinado a empunhar uma arma, para com ela amedrontares os teus semelhantes numa covardia em seu aspecto mais vil, serias um cidadão acatado, porque nesta sortida proliferação à razão estaria sempre a teu lado, todos se silenciariam quando tivessem que depor contra ti, e nem faltariam os falsos depoimentos, atestados graciosos, porque ninguém ousaria te enfrentar com receio de teu revide.

Verás, infelizmente, que indivíduos há que temem o homem, mas não temem a Deus  e zombarão de ti pela tua crença e honestidade, porque na hora em que fores atacado, ver-te-ás miseravelmente só embora ainda com Deus… Perdoa-me, meu filho, pelo que a ti eu involuntariamente fiz…

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Tropeços

A vida de um intelectual é toda cheia de peripécias, pois, na maioria das vezes, nada possui, vivendo de um salário que ele sempre julga ser mesquinho e o empregador sempre julga excessivo…

Precisa trajar bem, ser lhano no trato, cortês e afável, e enfrentar esse mundo de “nouveau riche” que tudo tem, exceto aquele “polish” inato que o vil metal não pode suprir.

Nos primórdios de minha carreira, o professor nada percebia durante as férias. Tornava-se, portanto, necessário dedicar- se a outra ocupação que se tornaria então a essencial, e o ideal passava a ser “bico”.., o que hoje está desaparecendo, porque não existe mais ideal.

Recordo-me bem do meu primeiro emprego. Foi numa firma americana. Um frigorífico. Boa direção, e honesta, tudo fazendo pelo interesse da firma, colocando a cabeça acima do coração. Nada de sentimentalismo. Exigiam o máximo, pagando o mínimo. Preenchi uma proposta, onde tive que responder a uma série de perguntas. Vasculharam minha vida, meus vícios e minha ideologia. Queriam saber quantos cigarros fumava por dia, e até minha bebida de predileção. Anexa à proposta havia uma série de, problemas sobre cálculo de rendimento, de fretes marítimos em moeda estrangeira, divisão proporcional. Aprovado, fui levado ao gerente.

Não estava eu habituado a enfrentar homens de franqueza rude, homens que haviam sido escolhidos entre milhares de outros para gerir os destinos de uma empresa em que se invertera uma fortuna incalculável. Olhar duro e penetrante, como a querer ler aquilo que eu não havia, escrito. Fez-me ele ciente de minhas obrigações, todas elas razoáveis, pois solicitavam minha dedicação, pontualidade e honestidade. Dentre as recomendações, achei bastante esquisita uma delas, e que só mais tarde pude compreender. Não po­deria eu brigar de modo algum com meu chefe de seção, senão seria dispensado sumariamente.

Foi chamado aquele que viria a ser meu chefe. Este me conduz à mesa de trabalho, apresentando-me aos demais co­legas de seção. Notava neles olhares fur­tivos como a me dissecarem. Pairava certo ar de inquietude. Queriam saber de minhas qualificações. Queriam avaliar o meu “pedigree” para fazer uma estimati­va de qual teria sido meu, ordenado ini­cial, que, segundo me haviam dito, seria confidencial, mas que logo ficou sabido ele todos.

Designou ainda o gerente um rapaz para que me ensinasse o serviço dele, pois queria que eu aprendesse o serviço de todos para poder substitui-los em qual­quer impedimento. Sempre fui ensinado pela metade. Os segredos do ofício nun­ca me eram revelados, e sempre com aquela boa vontade que eu compreendo mas não justifico. Portanto, meu trabalho sempre apresentava alguma falha; fruto de um mau aprendizado;

Meu chefe era um desses indivíduos que não haviam terminado nem o curso primário mas que, à custa de muita per­severança, e longo tirocínio foi galgando os postos e havia chegado ao máximo a que poderia ansiar . Cioso de sua posição, mais parecia o dono da empresa… “tout rempli de soi même”, apavorado, narciso.

Nessas grandes companhias, era pra­xe fazer-se um balancete mensal. Numa ocasião, fui repreendido pelo gerente por ter fornecido dados inexatos. Olhei em torno de mim e pude perceber aquele sor­riso de satisfação de meus colegas. Cri­ando coragem, voltei-me ao chefe e per­guntei-lhe por que não me havia defen­dido; fizera o trabalho conforme suas in­dicações e, ademais, havia sido entregue a ele para ser verificado. Replicou-me então que as instruções eram dadas por escrito em inglês, e que ele nada com­preendia daquele idioma, razão por que me orientara erradamente…

É exatamente isso o que se passa conosco em nossos dias. Indivíduos há, salvo honrosas exceções, que ocupam postos de chefia aos quais não estão afeitos, e o resultado estarrecedor é esse que contemplamos. Poderia mencioná-los, mas sei que a tesoura de nosso simpático re­dator-chefe entraria em ação, e eu não quero proporcionar-lhe esse dissabor. Os obstáculos que se encontram na ascensão são de caráter humano. A maldita in­veja impera em todos os setores. Ninguém faz nada sem tirar uma casquinha. O Governo serve para ele se aproveitar e na calada ir-se em comitiva designar pessoas que só conseguem vencer sorrateiramen­te, mas que jamais conseguem impor-se.

É, pois, como simples soldado raso, que procuro cumprir o meu dever para com a Pátria. Crendo honestamente que o estou fazendo, ouso desacatar a tudo e a todos, e dizer que está tudo errado. O nosso querido Brasil está sendo traído pelos seus próprios filhos, tragado no tur­bilhão do caos pela inadvertência e fal­ta de patriotismo de grande parte de res­ponsáveis – verdadeiras canas agitadas pelo vento…

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Paredón

Dia de todos os Santos. Levantei-me à hora de costume. Embora não tivesse que lutar pelo pão de cada dia, tinha que alimentar o espirito. Lá fui eu à igreja com a família. Sentei-me numa das primeiras fileiras junto da garotada. Prestava a máxima atenção para que meu pensamento não me traísse. Mas, qual… Sobejavam-me os pensamentos mundanos que não deveriam ter entrada naquele lugar sacrossanto e cheio de paz. Quanto mais eu fazia por embeber-me das sábias palavras, mais eu divagava. Preguei os olhos no pregador e procurei um pensamento espiritual que substituísse minhas mundanas distrações. Pus-me, assim, a pensar por que hoje não existem mais Santos. Que estará acontecendo em nossos dias que nos impede de chegar aos píncaros da santidade? Pensava nos missionários que renunciam a todo conforto e se embrenham pelos lugares mais inóspitos, numa luta sem tréguas com a maldade que se sobrepõe aos nossos bons instintos. Veio-me à mente o caso de dois jovens recém-ordenados sacerdotes que escolheram a China para seu campo de trabalho. A China, infestada de ladrões e salteadores que pilham suas vítimas na solidão das estradas ermas. Na demorada travessia, em um lento cargueiro, procuraram aprender pelo método Berlitz os segredos da língua do país de seu destino. Chegaram, enfim, a Hong-Kong, cheios de entusiasmo e esperan­ças, aguardados pelos seus superiores. Permanecem entre eles por algum tempo afim de melhor se aclimatarem e terem um contato maior com o linguajar monossilábico dos nativos. Impacientes, su­plicam seja-lhes indicado o campo de ação, pois o entusiasmo crescia minuto a minuto. E foram manda­dos para um lugarejo bem no re­côndito chinês, iniciando, cheios de fé, o trabalho que haviam es­colhido com fervor. A princípio, saiam juntos e conversavam com os nativos para ganhar-lhes a con­fiança, e os convidavam à Missão. Notavam com satisfação que o nú­mero ia aumentando à medida que ensinavam, vendo que seus esfor­ços não foram baldados. Enorme era o interesse. Chegou finalmente o dia de explicar a Crucifixão. Para maior compreensão, resolve­ram partir do concreto para o abstrato. Fizeram uma cruz rústica e mostraram àquela plateia em “sus- pense” a consumação do ato. Um deles ficava preso à cruz. Outro exibia os enormes cravos que seriam utilizados. Tal foi a sensação que a cena teve de ser repetida várias vezes; com a participação ativa de cada um.

Um belo dia, nossos amigos são chamados à estrada que circunda a vila. Lá chegando, custaram a crer no que viram. Os salteadores agora crucificavam suas vítimas.

É exatamente isso o que se passa em nossa querida pátria, o gigante que já não dorme em berço esplêndido. Nos meus tempos de criança fazia parte do currículo uma aula de Educação Moral e Cívica, onde se ensinava o culto à Bandeira, o amor à Pátria e o respeito às autoridades, aos pais e mestres. Os nossos “grandes” legisladores do ensino acharam de suprimir essas aulas  e o resulta- do é o que se vê hoje.

Onde está o amor a esta nossa “Pátria amada”, mãe de nossas mães? Onde está o respeito devido ao “auriverde pendão”, que hoje é carregado à frente dos amotinadores, dos sublevadores, e que serve também de tapete grevista nos trilhos das ferrovias e nas calçadas defronte às fábricas? Como somos capazes de ficar inconscientes diante do que veem nossos olhos e que nós fazemos por não enxergar?

Mandem um jovem cantar o Hino Nacional e serei capaz de apostar que não o saberá. Não tem ele a culpa, pois tão raras são as oportunidades de ensaiar. Maior culpa cabe aos pais que só se preocupam com o mísero e vil metal e que, pior ainda, apoiam até os jovens e os açulam à rebeldia.

Nossa pátria é o Shangri-la da terra, pois não se conhece um vulcão, um terremoto, nem um ciclone ou um inverno rigoroso. Um lugar privilegiado, abençoado por Deus.

Na última guerra, vi indivíduos serem presos só por falarem um idioma estrangeiro nas ruas. E, hoje, como mudou! Atenta-se contra a pátria, impunemente, por excesso de democracia… (que democracia mal dirigida!)

“Paredon” – para os que querem o “Paredon”!

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Medo

Quando por estas bandas arribei, há uns anos atrás, todo eufórico e esperançoso, para dar início a uma atividade para que eu não for talhado, jamais poderia eu ter sonhado com a reviravolta que se iria dar em minha vida que fora e continua sendo sempre de luta, do lado de fazer força…

Para descrevê-la basta fazer um paralelo com uma experiência que tive numa academia de jiu-jitsu. Principiante, tinha que me digladiar com outros da mesma classificação, mas que já haviam tomado algumas aulas antes. Apanhava de todos. E quando eu começava a aprender um pouco da arte e começava a obter alguma vantagem sobre os que haviam ingressado depois de mim, era elevado a uma categoria acima. Nessa nova classe, recomeçava apanhando até levar vantagem, ocasião em que era de novo reclassificado. Tive que desistir, porque sempre apanhava; e quando teria alguma vantagem, era elevado a categoria superior e voltava a apanhar. Enfim, eu só vivia apanhando. E ainda hoje não aprendi…

Voltando ao meu pensamento inicial, guando ,por aqui arribei, encontrava-me só, pois a família ficara na Capital, devido à escola dos filhos, cuja transferência seria possível apenas nas férias. Vivia saudoso dos entes queridos de quem nunca me havia separado. Assim, minhas noites eram de uma solidão tremenda. Procurava dormir bem tarde e lia bastante para não ter que pensar.

Como se aproximassem as festas juninas, fui convidado por outro convidado a comparecer às festividades da véspera de São João que se realizariam numa fazenda, cujas divisas confinavam com o perímetro urbano. Conhecia quase todos de vista, mas não conseguira travar amizade com ninguém; estranhava a frieza das pessoas numa terra cálida, onde todo mundo só se preocupava consigo mesmo, pouco se importando com os outros, ávidos todos e atentos ao “gold-rush”.

Ao cair da noite – noite fria de junho – o luar esparzia seus raios de prata. Saí a procura da fazenda, cuja posição exata eu desconhecia, sentindo uma vontade louca de me deixar perder pelos estradões afora, corno para mitigar a nostalgia que se apossara de mim. Fui a pé. E, quando percebia ao longe o lu­zir dos faróis de algum carro, desviava-me para o cafezal, fugindo de ser visto. Queria delongar-me o máximo, pois, intruso, não sentiria certamente o ca­lor da receptividade, convidado de convidado como era. Deixando o estradão, embrenhei-me por um car­reador, de onde vislumbrei ao longe o clarão de uma fogueira. O calor dos fogos mais forte se faziam sentir. Caminhava sem pressa, a matutar no que o futu­ro teria reservado para mim.

De súbito pareceu-me ouvir um cavaleiro dentro do cafezal, como que a chicotear as ramas dos cafeei­ros e a perseguir-me. Apertei o passo pareceu-me que ele também. Pernas para que te quero… Eu disparei – ele também. Na minha disparada, que teria

causado inveja ao nosso campeão olímpico, olhei pa­ra trás. Não percebi as elevações do  terreno para cortar a água das enxurradas e, esbaldando-me todo, lá fui eu beijar o chão. Minha hora havia chegado e, ainda deitado no chão, aguardei o meu “end”. Mas, para surpresa minha, o tropel e o chicotear haviam cessado. Percebi, então, que o eco das bombas e foguetes ao espocarem ressoavam pelo cafezal aden­tro, ricocheteando na folhagem.

Chorei de vergonha por ter-me deixado assim levar pelo medo. Ergui-me praguejante e passei a limpar as vestes e, envergonhado, continuei meu caminho. O ar frio da noite me acalmara e sentia brotar nas faces o rubor que a palidez do medo havia encoberto. Comecei a divagar, procurando uma justi­ficativa para o pânico que acabava de experimentar e, filosofando, achei que fora devido à solidão, mas dei-me por feliz por tê-lo conhecido a sós…

Aprendi minha lição, e, hoje, apesar de meu temperamento outonal, irrequieto e agitado, procuro nos momentos tenebrosos não fugir à realidade, en­carando-a, para não tornar a ouvir tropéis atrás de mim. Precisamos, nos momentos difíceis por que passamos, não ser presa do pânico, para .não perdermos o respeito por nós mesmos e por nossa, querida Pátria, esse Brasil colosso.

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Felicidade

Dotado de uma cultura humanística, não é de meu feito silen­ciar-me diante das tremendas aberrações que me são dadas pre­senciar fora da solidão e ostracismo a que espontaneamente me recolhi.

Professor, a prin­cipio por força de circunstancias  adversas, mas agora por um idealismo que quase chega às raias do fanatismo, volto cada minuto de minha existência à juventude que representa o porvir deste colosso que repousa em berço esplêndido, revivendo assim os tempos idos.

Como e árdua a tarefa. Tenho que viver aqui que ensino e creio; nas repreensões tenho que me colocar no lugar de jovem in­frator e rememorar que eu cometi as mesmas faltas e, portanto, preciso perdoar sem castigar.

E hoje, do alto do pedestal em que me vejo colocado, sofren­do todas as espécie de tentações e quase sempre do lado perdedor em virtude das falhas humanas que jazem ocultas em meu imo e que eu desconhecia possuir, precisava eu procurar um lenitivo para compen­sar o saldo negativo de minha existência.

Eis porque t como que a implorar o per­dão pelas minhas  falhas volvei meus olha­res para os mais infe­lizes que eu, esses pobres coitados que além de enfrentarem e luta pelo pão quoti­diano, veem seus entes queridos perecerem por falta de um recurso que a sociedade en­xerga mas pretende não, ver.

Então, fazendo mi­nha a sua desdita, passo eu a sofrer em seu lugar, sentir a dor calada em corações revoltados de pais que não mais têm coragem de lutar, pela defesa dos que lhe são caros e deixam assim a vida e os dias passarem, como que conformados com a sorte que Deus lhes deu, nem mesmo encontrando nos infelizes como eles o consolo e a simpatia que
seria justo espirar.
E Deus, lá de cima, como que aprovando a luta pelo bem estar de nossos semelhantes, parece dar o seu aceno de aprovação animando-me a prosseguir. E prossigo, o ideal por inúmeras vezes desviado para coisas fúteis, vazias, concentrado sobre pessoas piores que eu e que se revestem de um ara de pureza para mais me amesquinhar. E assim tropeçante e cambaleante prossigo, até que novos a lentos me impelem a voltar à carga com maior ardor e ímpeto à sombra daquele aceno  amigo…

Nesse turbilhão de sentimentos comecei a sentir algo extraordinário que a princípio não me foi possível entender; sentia-me satisfeito internamente: era e felicidade, essa felicidade que tanto se procura e nunca, se encontra porque ela não é traduzida em matéria, mas num estado d’alma…  E como que a me incentivar, comecei a sentir e a compreender o afeto inocente de uma criança que não sabe agradecer, mas que fez sentir sua gratidão naquele semblante de criança viva que sente, mas não enxerga…

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Dia da Bandeira 

Num calendário ao meu lado, li: 19 de novembro de 1889 o governo provisório da República decreta a nova Bandeira Brasileira.

Vesti meu terno, domingueiro e lá fui eu à rua apressado, julgando ter perdido alguma festividade inerente à data da instituição da nossa Bandeira, quatro dias após a Proclamação da República.

A cidade em sua calmaria domingueira. As casas comerciais com as portas cerradas. O povo formando grupinhos de fronte aos bares, cinema e esquinas.

Ouço o som de uma corneta; o bater de caixas e o atordoar das zabumbas. Meus pés se encaminham em direção ao ginásio de onde provinha o zabumbar. A rapaziada estava afinando seus instrumentos da fanfarra. Deparei com um pequeno grupo de colegiais, alunos dos diversos cursos, cada qual empunhando o estandarte de sua escola, os mais idosos o emblema de nossa grande e amada Pátria.

Senti dentro de mim, aquele calor de emoção que me invade o imo, quando defronte o auri-verde… A rapaziada vestida a garbo, em suas alvas vestes.

Inicia-se o cortejo, fanfarra à frente e logo atrás, o punhado de jovens com os estandartes. Número bem reduzido, mas garboso, fazendo o possível para se esmerar em qualidade o que faltava em quantidade, cada qual cônscio de seu dever, orgu­lhosos em fazerem parte daque­le pugilo.

As donas de casa deixam por um instante a azáfama cu­linária para darem uma espiada àquela parada de demonstração de civilidade.

O nosso garboso sargento, marchando ao lado do pelotão que comandava, deixa patente o orgulho que lhe invade a alma, o que incentiva os comandados a um marchar mais garboso, fa­zendo então os estandartes on­dearem ao sabor da brisa que soprava como que a arrefecer a canícula que se fazia sentir. Or­gulho contagiante , que se fazia refletir nos semblantes honestos e juvenis daquele pugilo irmana­dos pelo mesmo ideal e que não conhecia nenhuma descriminação racial ou social. Era um punhado de jovens brasileiros que estampavam o pundonor de pertencerem a esta querida ter­ra que se eleva entre outras mil. Quando de retorno ao pátio fronteiriço ao ginásio, tive a grata e honrosa satisfação de ser convidado pelo mui digno diretor daquele estabelecimento, a quem no ensejo quero deixar aqui expressas minhas palavras de gratidão pelo honroso convite para proceder com o hasteamento do nosso querido Pavilhão.

Acedi, titubeante a principio, pois não me julgo à altura de tamanha honraria. Ao tomar os cordéis com as mãos trêmulas pela emoção e ao som do brado a Bandeira fui eu hasteando até o topo, coincidindo com os acordes finais.

Que sensação, meus caros jovens, estar ao vosso lado sentindo dentro minh’alma o mesmo pulsar de frenesi que sentiam dentro das vossas, sentir que nosso auri-verde lá alto de um céu azul; vos abençoava por não o terdes esquecido ! E, eu, erguendo os olhos para onde  desfraldava ondulante a. nossa querida e amada bandeira, como que a nos dizer que sob seu abrigo seremos sempre um povo livre e altaneiro pensei: “Mil, vezes o inferno com dignidade, ao Paraiso em humilhação”…
Saí dali para prestar meu culto às bandeiras que deveriam ter sido hasteadas e só fui encontrar a da Cadeia Pública… sem pensionista para o Estado.

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Gratidão 

Noto em casa uma azáfama fora do comum. Agora que estão findas as aulas e os exames, recebi o ultimatum de que não devo largar os livros sobre as mesas, como é de meu hábito, pois precisamos deixar a casa em ordem, não somente em preparativo das festas que se aproximam, mas também pelo retorno de nosso filho extremado que à casa paterna volta para preencher uma lacuna temporária que sua ausência produz.

E eu cansado pelo esforço dispendido durante o ano prestes a se finda, esforço esse que para mim é jubilante porque foi dispendido ao lado dos jovens que sempre admiro e procuro incentivar, aguardo a chegada de nosso filho, para com ele encetarmos a caiação da residência onde habitamos…

Não bastasse isso, acabo de receber uma carta de um rapaz, meu ex-aluno, que teve a gentileza de me escrever e enviar um convite para sua formatura em Curitiba. Formado há três anos pelo Ginásio, acaba ele de concluir o curso Clássico e no ensejo, quero deixar aqui os meus votos de felicitações pelo seu êxito, e fico aguardando o desfecho de sua terceira vitória, que é nossa também.

Ao ler sua missiva, confesso, as lágrimas, começaram a brotar… Lágrimas de alegria e de satisfação… E não, tenho palavras para expressar aquilo que invade minha alma, e sei que ele me perdoará ao passar a transcrevê-la.

 

“Caro Mestre,

Que a Felicidade e o progresso sejam constantes companheiras de teu lar.

Talvez não lembres deste que te escreve, pois tantos dias se passaram sem que a nossa tivesse continuidade. Ontem, porém., em outro lado do Estado, numa outra escola, uma nova vitória iluminou a minha consciência, e esta soube escolher-te companheiro do triunfo.

Nem tudo aquilo que se ganha pertence ao vencedor. O que acabo de conquistar não é fruto exclusivamente de mim, nem dádiva dos céus, nem presente dos ricos, mas sim, do mestre e amigo, que me ensinaste os princípios dos conhecimentos, sem os quais permaneceria nas trevas da ignorância.

Deves estranhar e até ficares surpreendido, quando receberes este convi­te. Não te espantes!  A vida é uma esca­da infinita de pontos. É semente assim, galgando os altos pontos, que posso amenizar a minha dívida contigo.

Permite que confesse, caro mestre, que esperei três anos por esse dia. Que alegria! Dizer que, desempenhaste até aqui em meu espirito um papel preponderante. Às vezes a gente estuda com mais uma finalidade – de não decepcionar aqueles que incutem em nosso espírito a sabedo­ria.

Atingi um, dois… e muitos pontos terão que ser atingidos – a estrada é infinita. Embora a vida apresente imposições difíceis, marcharei nessa nova luta que se reinicia, com o mesmo ânimo e garbo com que cheguei até aqui, afim de demonstrar que um ótimo mestre faz um verdadeiro homem.

Aceita, caro mestre, uma parte do meu triunfo. E tenhas sempre em mente que tudo aquilo que eu conquistar, a metade te pertence.

Deste que ,te considera,

X…”
Este será para mim um dos Natais mais felizes. E, na oportunidade, gostaria de repartir com todos os meus diletos alunos do presente e do passado a felicidade que de mim transborda.

A MARRY XMAS AND A HAPPY NEW YEAR TO YOU…

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