CASAMENTO

Arranjos de família

—  Meu irmão João, mais velho em idade, —  conta José Kairalla — desejava muito que eu me casasse e tudo fazia para que um casamento fosse consumado. Sendo ele amigo dos  Chiuffi da cidade de Jaú, conhecia uma moça dessa família de nome Menthaa. Corria, então, o ano de 1906. Estando ela de regresso de uma viagem que fizera a São Paulo, e eu em Brotas, meu irmão João arranjou para que eu também embarcasse no mesmo dia e no mesmo trem em Brotas, para nessa oportunidade ser apresentado a ela e, se possível, iniciar um romance, que poderia dar em casamento, pois era ela de boa família. Naquele dia, entretanto, estourou uma greve dos empregados da Cia. Paulista de Estradas de Ferro e um trem de carga foi bloqueado na Serra de Brotas.

José e Amélia e seus oito filhos em Monte Alto. Junho de 1923.

O casal Amélia e José Kairalla com seus oito filhos.  Foto em Monte Alto, junho de 1923.
Os quatro mais velhos em pé (da esquerda para a direita): Olinda, Michel, Olga e Waldomiro.
Alice está em pé, ao lado da mãe  que segura no colo o caçula João.
Ao lado do pai está Odete (segurando uma bolsinha) e, ao centro, Nelly entre a mãe e o pai.

“Mas o boato que correu era que o trem de passageiros que procedia de São Paulo, que era o trem no qual estávamos, havia sofrido um grave desastre naquele local, o que alarmou toda a população de Jaú. Em consequência da paralisação do trem, eu resolvi pernoitar em Torrinha. Apenas no dia seguinte embarquei para Jaú, encontrando meu irmão João, que ficou contente por me ver a salvo. Nesse dia em Jaú, encontramos o Sr. Feres Buchain, comerciante em São Paulo e velho conhecido de nossa terra natal. Feres Buchain era compadre da família Chiuffi. Sabendo de nossa intenção, Feres Buchain foi dizer à família Chiuffi que eu tinha feito um pedido de casamento, de uma prima dele, que residia em Mineiros. Mas isso não era verdade, pois nem conhecia essa prima. A intenção dele era que não desse certo essa aproximação que meu irmão estava tentando fazer com a Srta. Menthaa Chiuffi. Nessas condições, já contrariado com o sucedido, falei ao meu irmão que desistia em definitivo aproximar-me da Srta. Menthaa, como de fato aconteceu”.

“João conhecia também Naim Soubhie, que residia naquele tempo em Santo Antonio da Figueira, município de Dois Córregos. Encontrando-se casualmente Naim  contou a João que tinha chegado havia pouco da Síria, uma sua parente, bonita, que estava morando em Bauru. O meu irmão João, com espírito casamenteiro, pensou que seria uma boa oportunidade para mim. Assim, logo combinaram que eu iria a Bauru, com Naim Soubhie e faria uma visita de cordialidade à prima. Desse modo, num dia combinado do ano de 1906, fui com Naim Soubhie a Bauru visitar o Sr. Saad Thomé Soubhie, com quem a prima estava morando”.

“Naim Soubhie, conversando com o Sr. Saad, informou das minhas intenções, que eu pretendia casar-me com a prima recém-chegada. Porém, eu não tomei parte nessa conversa. Tive, é verdade, oportunidade de ver a moça, que também, e possivelmente interessada, às escondidas vinha espiar a sala em que estávamos. Algumas vezes atravessou a sala. Verifiquei que realmente era bonita e simpática. Seu nome era Amélia Soubhie e tinha o apelido de Teffeha. Mas não tivemos ocasião de conversar”.

“O Sr. Saad Thomé Soubhie ficou de consultar Teffeha e depois dar uma resposta. Dias depois Nahim volta a Bauru e recebe notícia de que todos estavam de acordo com a possibilidade de noivado e casamento. Mais ou menos em julho ou agosto de 1906, foi feito o pedido oficial de casamento, ficando portanto noivos, na presença ainda de meu irmão João, Naim e outros amigos”.

“Aí comecei a me preparar para o casamento. Fui a São Paulo. Comprei várias joias, dentre elas alguns brilhantes para a já então minha noiva. Deixei com ela também o dinheiro necessário para que fizesse o seu enxoval, segundo a nossa tradição. Em Brotas, onde eu residia, havia uma família nordestina de nome Furtado, que tinha uma moça “solteirona”, a quem chamávamos de Tia. Como era muito nossa amiga, prontificou-se a arranjar tudo, para que nada faltasse em minha futura casa”.

Bauru-EFSorocabana-1908

Inauguração da Estrada de Ferro Sorocabana, em Buru (1908) com a presença do Presidente Afonso Pena

O casamento ficou marcado para o dia 27 de setembro de 1906. No dia 25 de setembro embarquei para São Paulo, a fim de ir buscar um padre ortodoxo, para realizar nosso casamento em Bauru. 0 padre se chamava Sugaya (ou Sugahia) e era o único que existia em São Paulo, tendo mesmo uma graduação superior ao de padre. Aí tive uma surpresa. O Padre Sugaya disse que não podia viajar, pois no dia seguinte era dia Santo e não poderia em hipótese alguma deixar sua igreja para ir ao Interior celebrar um casamento. Se a cerimônia fosse adiada então poderia ir. Firme, eu lhe disse que não adiaria meu casamento. Ainda mais, lembrei-lhe que Cristo tinha dito: O bom pastor larga 99 ovelhas, para ir atrás de uma que está desgarrada. Ele bem compreendeu a lição e disse: “Pois também largarei minhas ovelhas em São Paulo e irei a Bauru fazer o seu casamento”. No dia seguinte comprei as passagens e embarcamos para Bauru, celebrando o nosso casamento no dia marcado, 27 de setembro de 1906. Além das passagens gratifiquei-lhe com duzentos mil réis, com o que ficou muito contente. Naquele tempo um saco de
café limpo custava 15 mil réis”.

“No dia 28 de setembro embarcamos para Brotas, já casados. Na estação estavam nos esperando muitos amigos e a família Furtado. No sobrado em que iríamos morar, encontramos tudo em ordem, inclusive o almoço, dado a dedicação da família Furtado, que sempre nos recordamos com saudades”.

“Uma vez instalados em Brotas notei que o enxoval que Teffeha trouxera era pequeno. O dinheiro que deixara com o Sr. Saad Thomé Soubhie daria para um enxoval maior e melhor. Resolvi então escrever uma carta a ele indagando da aplicação do dinheiro. Ele apresentou uma conta exagerada, incluindo todos os gastos que tivera com Teffeha desde que chegara da Síria, por mais ou menos dois anos. Assim, passei a considerar que obrigação alguma ficávamos devendo ao parente Saad Thomé Soubhie”.

“Mas tudo isso se passou sem turvar nossa felicidade”.

Viagem ao Líbano-Síria

Em 1908, após dois anos de casamento, quando José Kairalla ainda residia em Brotas (SP), os Srs. Mubada Soubhie e Falahar Izar lá estiveram, como velhos e bons amigos, para se despedirem, pois estavam para fazer uma viagem para a Síria. E conta José Kairalla, relembrando a ocasião:

—  Nessa oportunidade eu estava um tanto cansado e necessitando muito de um bom repouso. Como estávamos trabalhando em três irmãos – João, Simão e eu – ficou resolvido, de comum acordo, que eu também iria para a Síria aproveitando aquela boa companhia. Assim, eu me recuperaria e daria muita alegria ao velho pai, que continuava morando em Mimes. Embarcamos juntos.

“Quando chegamos a Beirute, procuramos um bom hotel para nos alojarmos. Nesse hotel estavam hospedados dois paxás egípcios. Porém, quando atravessamos o saguão pela primeira vez, não sabíamos da qualidade de Paxás daqueles senhores. Entramos sem os cumprimentar. Isso motivou o fato de que, enquanto permanecíamos no saguão, os dois Paxás se aproximaram e nos cumprimentaram. E então ficamos sabendo de quem se tratava. Ficamos atrapalhados e nos desculpamos como pudemos, informando que a nossa entrada havia sido conforme o costume já brasileiro. Apesar dessa nossa falta, ficamos contentes com o acontecimento”.

Beirute-1908

Cartão postal de Beirute, 1908

“Em Beirute, os amigos e eu fomos a um bar para tomar sorvete, que é dos melhores do mundo, e fumar narguile que muito apreciávamos e que não existia no Brasil. Ainda em Beirute fui a um alfaiate e comprei um terno de casimira francesa, pelo preço de uma libra, que na época correspondia a 10.800 réis  (ou CR 10,60, em 1963). Muitas outras compras foram feitas: doces, presentes, etc, dando quase para carregar um burro; tudo isso com muito pouco dinheiro”.

“Separando-me de meus amigos, tomei a direção de Mimes, alugando dois burros, um para o meu transporte pessoal e outro para o de carga. A viagem de Beirute a Mimes levou quase dois dias, num percurso de mais ou menos 100 quilômetros. Essa viagem eu a fiz junto com minha irmã Leia que, para grande alegria minha, encontrei em Beirute”.

“Na casa de meus pais, em Mimes, estavam todos bons e os velhos pais choraram de alegria ao me rever. Meu pai, de tanta alegria, dançou “Yorkos” (= sozinho, com o lenço na mão). Nessa época era o outono e uma grande variedade de frutas estavam à nossa espera, o que muito nos regalou. Nesse ano de 1908, em julho, quando ainda me encontrava lá, caiu o Sultão Abdo Al Kamita, que foi substituído pelo Sultão Abdo Al Aziz. Como no governo anterior as coisas não andavam muito bem, todos confiavam que o novo governo promoveria mais justiça e, em consequência, tinha-se à vista mais progresso”.

Rachaya-MonteHermon-Taylor-1884

O Monte Hermon, Rachaya, na gravura de Taylor (1884)

“Dias depois fui a Rachaya visitar minha irmã Dalul. Não demorei muito para perceber que ela estava um tanto tristonha. Perguntei o que se passava e Dalul me respondeu que o “caruf” (carneiro) que ela com tanto cuidado estava engordando para obter gordura, havia morrido”.

– “Se tivesse perdido o “harmar” (burro), não teria ficado tão triste” – ela disse.

“Perguntei e ela me informou que o caruf custava uma libra e que o harmar oito libras. Então, para alegrá-la, dei-lhe duas libras para que ela comprasse não um, mais dois carufs, e assim não precisaria desejar a morte do pobre harmar…”

“Depois de ficar com minha irmã Dalul por mais ou menos uma semana, regressei para Mimes. Logo depois fui a Blat visitar em retribuição minha cara sogra Missad, onde fiquei alguns dias, tendo oportunidade de visitar uma fazendinha no território do Líbano”.

“Lá estava uma irmã de Missad, que em sinal de respeito, ao cumprimentá-la chamei-a de Tia, como o fazemos aqui no Brasil. Ao contrário do que eu esperava, ela não gostou do tratamento. Ficou triste e reclamou para sua Irmã Missad. Minha sogra interpelou-me sobre o motivo de haver tratado mal a sua irmã, xingando-a de cigana. Precisamos nos entender e tudo ficou esclarecido. “Tia”, naquela região do Líbano queria dizer “cigana”.
E assim, tudo voltou às boas, depois de muito rirmos do acontecido. Missad explicou à sua irmã que na qualidade de marido de Teffeha nunca a trataria de modo descortês, mas sim com o máximo de respeito”.

“Em fins de novembro de 1908, regressei ao Brasil, trazendo comigo Emilio e Jacob Farhat, que ficaram residindo em minha casa em Brotas. Nessa viagem viemos no mesmo vapor em companhia do Sr. Miguel Azem, cunhado do primo Said Kairalla. Tudo correu bem e a 18 ou 19 de dezembro de 1908 chegávamos ao porto de Santos. Dois dias depois estávamos em Monte Alto, com grande bagagem e muita coisa para contar”.

Dia 23 nasceu Michel, meu segundo filho.

Apresentação  –  Líbano-Síria  –  Juventude  –  Brasil 
Casamento  –  Filhos  –  Curiosidades  –  Fotos

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.